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VIAGEM AOS ZOROWAHA UMA AVENTURA NO SEIO DA FLORESTA

  • Foto do escritor: Psicologia PUC Minas SG
    Psicologia PUC Minas SG
  • 18 de out. de 2019
  • 27 min de leitura

Maria Cristina Martins de Andrade


Deixamos o porto de Lábrea em manhã de chuva fina. A bruma que se estendia sobre o rio borrava os limites de sua superfície leitosa. Ali começava para valer a minha expedição, ali eu deixava terra firme para descer e subir rios que se desembocavam promíscuos uns nos outros. Seriam uns oito dias de navegação para então entrarmos. Entrar é o verbo que se usa quando se vai visitar uma aldeia na floresta, mas só lá entendi o sentido que sempre teve: visitar uma aldeia é fazer caminho sobre folhas úmidas, por entre árvores e cipós, até que não haja nada mais, para onde quer que olhe, além delas e de você. Aí então descobre que entrou, que está dentro da floresta, pois mesmo o céu desaparece no azul longínquo que se esgarça no topo das árvores. Era dia 29 de dezembro, 1999 ficava aos poucos para trás e com ele um século e um milênio.


Sentada na beira do barco deixo o vento úmido molhar meus cabelos enquanto pensamentos e emoções me disputam.


Desde pequena fui dada a viagens e aventuras, é da minha natureza, como diria o escorpião. Criança, aventurava-me como bandeirante independente pela caatinga do interior baiano, levando comigo outras tantas, em busca de tesouros enterrados e fósseis. Jovem e depois adulta, avancei a caatinga e fiz do mundo o território a ser explorado; a bandeirante nunca me abandonou. Mas o que quer que tenha feito ou onde quer que tenha ido, antes daquele ano de 1999, alcançaria a aventura que estava por viver e viveria.


Deixei Belo Horizonte no dia 26 de dezembro, com destino a Porto Velho, onde me encontraria com Mário para então prosseguirmos juntos. Uns quatro meses antes Mário chegou lá em casa e perguntou-me se eu ainda pensava na ideia da viagem aos índios. “É claro que penso!!” “Então, se quer mesmo, podemos ir no final do ano!” Incontida eu ria entre incrédula e eufórica, mas só tive certeza de que iria quando ele disse que me acalmasse porque tínhamos muito que conversar e organizar, muitas coisas que eu precisava saber e muitas providências a tomar – de vacinas a indumentária e preparo físico; afinal, navegaríamos uns oito a nove dias em barco médio, que alugaríamos, mais umas cinco a sete horas em canoa com motor de rabeta e depois caminharíamos dia e meio na floresta, num ritmo que precisaria ter seu compasso – de Mário – pois teríamos que alcançar a primeira oca que estaria vazia, para nela dormir; eles haviam se mudado logo após a colheita do abacaxi, disse Mário.


A bandeirante incauta veio correndo lá da infância pra dizer que não seria problema armar rede e dormir na floresta e que havia acampado muito, na adolescência. “Isso não é possível”, Mário disse sério e repetiu: “lá, isso não é possível”. Percebendo minha intenção de retrucar fez-se peremptório: “NÃO dormiremos na floresta, não há como colocar as redes nem como fazer fogo pois será época das chuvas”. A seriedade com que me retrucou deu-me a medida de que estaria enfrentando algo, definitivamente, desconhecido para mim.


Mario havia estado com os Sorowaha, também grafado Zorowaha ou Zuruaha, através do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) que, por sua vez, deles teve conhecimento através de garimpeiros. Tendo adentrado território desconhecido, garimpavam nas margens de um rio quando um pequeno grupo de homens nus, portando flechas e emitindo palavras que não reconheciam surgiram; sem qualquer tentativa de contato fugiram, deixando tudo para trás – instrumentos e alguns utensílios. Relataram então ao CIMI esse contato, dando referências dos rios percorridos. O primeiro contato oficial foi em 1980 e desde 1984 o CIMI e OPAN (Operação Amazônia Nativa) – e depois algumas ONGs, inclusive estrangeiras, e universidades – mantiveram contatos esporádicos, preservando seu isolamento, trabalhando pela demarcação de suas terras e levantando dados que possibilitassem conhecimento sobre esse grupo (dados populacionais, língua, cultura, subsistência,...). Foi em um desses contatos que Mário entrou e, retornando uma segunda vez resolveu, com anuência do grupo, ali ficar – período que se estendeu por três anos sem que ele de lá saísse. Tornou-se com isso intérprete e quase alguém do grupo. Depois de três anos saiu, mas manteve contato alternando entradas e saídas. Foi em uma dessas saídas e vinda a Belo Horizonte que o conheci, através de uma amiga comum.


A VIAGEM


Conto essa história sem consultar meus registros que foram muitos. Mas a experiência tornou a lembrança em grande parte inesquecível. Sem sair do país me foram necessários 12 dias para que eu chegasse ao destino tão almejado. De Belo Horizonte um Boeing levou-me a Porto Velho, nas margens do rio Madeira, capital do Estado de Rondônia; dois dias na cidade para alguns preparativos e contatos e um avião, com capacidade para umas 20 pessoas levou-nos então até Lábrea, já no Estado do Amazonas; para chegar à tribo navegamos quatro rios: Purus, Tapauá, Cuniuá e Riozinho. Nunca tinha ido tão longe sem percorrer tanta distância; a despeito de todas as curvas dos rios não acredito que tenhamos feito 1000 km – na ocasião eu não tinha instrumento para medir e menos ainda o barco. Aqui um esboço dos rios percorridos.





O pequeno avião que nos levou a Lábrea sobrevoou baixo o que era só floresta, entrecortada por águas largas e calmas serpenteando um incomensurável mundo verde. Tudo era tanto que parecia ser pouco meu olhar; entre o êxtase e a estupefação eu me sentia transformar em pura sensação, não havia pensar. A paisagem foi a mesma durante toda a viagem, que não foi longa, até que chegamos a Lábrea – a princesinha do Purus – um importante centro de comércio do sul do Estado, enquistado nas margens do rio Purus, primeiro grande afluente da margem direita do rio Amazonas, me contaria meu pai.


Do aeroporto – uma pequena pista que passava ao lado da sala de embarque e desembarque, cujo tamanho fora meticulosamente calculado para RIO PURUS FOZ DO TAPAUÁ RIO TAPAUÁ RIO CUNIUÁ RIOZINHO Início caminhada LÁBREA caber: “Aeroporto de Lábrea” – saímos para a cidade. Nela foram dois dias, tempo necessário para contatar nosso barqueiro, Seu Sizínio, e seu ajudante Xicó, conhecer o barco, fazer as compras – alimentação, combustível e água potável. Tudo tinha que ser pensado cuidadosamente: a comida deveria ser suficiente para ida e volta pois só em Foz do Tapauá encontraríamos um entreposto, e estava a apenas dois dias e meio de Lábrea; não perecíveis era a ordem do momento, a carne seria seca e pescada, frutas e legumes só para a ida e folhas nem pensar – nem as havia. Poderíamos achar alguma fruta no caminho, nos disse Seu Sizínio – aquiesci me perguntando como e onde seria. Tudo, inclusive a água, foi pensado só para o trajeto no barco, pois nada levaríamos para a tribo, comeríamos e beberíamos o mesmo que eles. Com o combustível foram cálculos parecidos: o óleo para o barco, a gasolina para motor da canoa e o número de dias, considerando a contracorrente da volta, no Purus, que por ser muito maior que os outros e de água mais pesada, exigiria mais que as três contracorrentes da ida.


O posto de saúde era outra providência, remédio que aliviasse uma eventual malária; as vacinas contra febre amarela e tétano já tinham sido tomadas. No posto nos foi pedido que levássemos remédios para os ribeirinhos (malária sobretudo) dos rios Cuniuá e Tapauá, pois eles estavam sem gasolina para o barco. Perguntei por que e, segundo disseram, havia tempo não chegava dinheiro para essas despesas; nem por terra conseguiam atender a população próxima pois a caminhonete também estava sem combustível. Não são apenas os ribeirinhos e índios que estão abandonados naquele mundo das águas. O Brasil desconhece o Brasil! Deixamos o posto com uma sacola de medicamentos. De volta ao hotel os últimos arranjos, sairíamos cedo no dia seguinte. Deixamos Lábrea sob uma chuva fina e insistente – o inverno do norte.


Chegamos de manhã em Foz do Tapauá, a última cidade por que passaríamos e onde deixaríamos o Purus para subir o rio Tapauá. Paramos para completar o combustível e alguma compra cuja falta se fizera visível, nesses dois dias e meio de navegação. A faina se concentrava na beira rio e em duas ruas de terra que lhe eram paralelas, cortadas por outras três que transversais ao rio não iam muito longe; a floresta estava logo atrás. Isso era toda a cidade. Na beira rio casas e comércio se equilibravam sobre gigantescos troncos de árvores, o que lhes permitia subir e descer ao sabor das águas e enchentes – era a rua principal. O movimento de barcos era intenso pois era o único local mais equipado em toda a circunvizinhança. Havia um “posto” de combustível, pequenas lanchonetes restaurantes e um grande armazém, tudo isso sobre troncos. No armazém, quase uma loja de departamentos de um cômodo só, a vaidade feminina podia encontrar esmaltes e batons, o dono do barco motores de médio e pequeno porte, a meninada podia comprar isopor com flavorizantes (baconzitos e similares), a dor encontrava refrigério, moradores e viajantes podiam fazer a feira – farinha, carne seca, alguns enlatados e empacotados – a construção tinha ali ferramentas e madeiras, rolos de cordas de tamanhos variados se empilhavam, calças, botinas, chinelos, vestidos, camisas e camisetas se penduravam onde podiam e a angústia, assim como as infecções podiam encontrar tarjas pretas e vencidas – pedi para ver e mostrei ao vendedor que me disse ser o que tinham e as pessoas precisavam. O que dizer ou fazer diante tamanho abandono?! Os barcos alimentadores demoravam meses para passar.


Mario queria encontrar a casa do CIMI para falar de nossa entrada e aproveitamos para caminhar um pouco pelas “ruas da cidade”. Falar de nossa entrada e trajeto, fui descobrindo, era algo imprescindível; era assim que se saberia de nossa ausência e por onde talvez nos procurar. Deixamos a vila com a tarde já avançada e entramos no Tapauá. Outra etapa, rios mais desertos; adentrávamos cada vez mais. Um barco cruzou o nosso, chamava-se BOAS NOVAS – um bom nome para se encontrar, assim, no meio do rio, no seio da mata, nas entranhas do Brasil.


Era dia 31 de dezembro e ancoramos pouco depois. O novo século e o milênio nos aguardavam e à nossa ousadia.


Fecho os olhos e posso ouvir o silêncio da noite que cai, quem se aquieta e quem desperta. Nossa rotina se estabelecera, aos poucos, em dormir cedo e acordar com o dia; manter a luz acesa de noite, por muito tempo e com o motor desligado era colocar em risco a bateria. Assim, quando o sol sumia por detrás da mata anunciando a noite, anunciava também nosso momento de parar. No Purus buscávamos margem de barranco com alguma vegetação para nos amarrar, nos rios de água preta (não leitosa) buscávamos a entrada de algum estreito igarapé, em cuja “esquina” pudéssemos ancorar e fechar com nossa rede sua entrada, garantindo o almoço seguinte.


Não tão grandes quanto o Purus, nesses rios as margens se vestiam de mata e sempre densa; o barco era então amarrado em algum tronco mais forte, em posição geralmente paralela à mata e tão próximo que alguns galhos vinham bisbilhotar nossa morada temporária. Essa proximidade trouxe um receio e a pergunta foi inevitável: “há risco de que cobras ou mesmo outros bichos entrem no barco?” Afinal, pensava comigo, os galhos não só possibilitavam como pareciam incentivar a visita – cheiros novos, carne nova, nunca se sabe. “Nããão – respondeume com certo desdém „Seu‟ Sizínio, nosso capitão – eles têm mais medo que nós”. “Mas não com a gente dormindo e com tanto cheiro diferente”, retruquei. Sem contra-argumentos ele disse peremptório: “Num se procupe‟ dona Cristina, num vamo tê visita, num vai acontecê nada”. Tomei então por decidido, não pensei mais no assunto e todo fim de tarde pedia licença para ancorar.


Ancorados ainda dia preparávamos a noite, cada um no “seu a fazer”, e depois eu me punha a ler na rede, aproveitando as réstias de luz. Noite feita jantávamos e nos acomodávamos, cada um em sua rede; contávamos histórias, eu enchia Seu Sizínio de perguntas e apreciávamos o céu cujas estrelas eu tinha a certeza de poder pegar, se esticasse um pouco mais os braços. Estávamos próximos à linha do equador e não havia uma luz sequer que não fosse a nossa, ou a densa pincelada luminosa em que se transformara ali a via láctea, pronta a derramar estrelas que pareciam não caber. Algumas noites eu deitava no teto do barco e me deixava ir na escuridão, pendurada nas estrelas que pareciam me tocar, ouvindo sons diversos, atenta àquele mundo que eu desconhecia e me encantava. Foi numa dessas noites entre águas, céu e mata, na escuridão total, que me dei conta, tomada por um sentimento de assombro e alumbramento, da solidão que pode ser o existir. Nada havia além de nós e nosso barco, imersos em natureza exuberante, desconhecidos, e assim poderíamos permanecer e desaparecer. Nada no mundo sabia ou saberia de nós.


A viagem de ida durou oito dias e todas as manhãs ao “assuntar” nossa rede-barreira – a malhadeira – havia sempre alguma coisa; recolhíamos o que nos atenderia almoço e jantar e deixávamos ir os demais. Peixes variados e tracajás (uma tartaruguinha muito comum nos rios de água preta e muito apreciada) fizeram nosso cardápio diário, regado a vinho de bacaba, ora branco ora vermelho, na verdade um suco preparado por Seu Sizínio que as colhia sempre que via uma palmeira carregada.


O convívio estreito e o tempo nos fizeram mais íntimos, dividíamos todas as tarefas, com alguns predomínios é óbvio. Até a pilotagem dividimos e, quando já mais confiantes, largavam por completo o barco na minha mão. Aprendi a distinguir um braço do curso normal – é preciso “ler a corredeira”, dizia “meu mestre” Seu Sizínio – pelo tipo de vegetação da beirada; aprendi a reconhecer corredeira leve ou pesada e a como fazer curva – tal como em todas, é mais interessante tangenciar e aqui sobretudo, pois a corredeira vem por fora. “Vou sair daqui uma craqueza nisso”, brincava eu e Seu Sizínio, mestre orgulhoso, dizia: “Já tá dona Cristina, já tá”; ao que Mário rebatia ”Não empolga ela não Seu Sizínio”. Foram dias muito agradáveis a despeito dos carapanãs e piuns que nos faziam dormir de cortinado no Purus e usar chapéu com filó e mangas compridas nos rios pretos, durante o dia e com menor velocidade. Ali não era preciso falar muito para engolir mosquitos, bastava abrir a boca.


Durante nosso trajeto encontramos alguns barcos residência e passamos por algumas colocações – pequenas comunidades ribeirinhas – a quem fomos entregando os remédios e algumas roupas, cadernos, lápis e giz que Mário me havia sugerido levar. Após o sétimo dia de viagem, já no Riozinho, equipamos a canoa (motor, mochilas, equipamento fotográfico, comida para o trajeto a pé) e deixamos o barco grande onde ficaram Seu Sizínio e Xicó. Nos esperariam ali por seis dias – era o tempo que ficaríamos na aldeia.


Partimos por volta de uma hora da manhã para alcançar a entrada da trilha no máximo às oito horas, pois seria um longo dia de caminhada até a oca vazia, onde dormiríamos nossa primeira noite. E assim foi. De canoa viajamos um tempo no escuro e assistimos ao dia se esboçar preguiçoso, suficiente apenas para nos deixar ver a neblina que tomava toda a mata, a margem e mesmo o centro do rio. Embevecidos com o espetáculo vimos a luz vazar a paisagem etérea, tornando mágica e ígnea nossa alvorada. Lembrou-me o quadro de um romântico, se não me engano F.E. Church, intitulado “Amanhecer nos trópicos”. Sim, eu amanhecia nos trópicos, no seio da floresta e sentia no corpo a volúpia do milagre. Eu via o sol vazar a bruma e senti-lo tocar a carne, apenas tépido, era uma epifania sensória. A intervalos cada vez mais curtos os sons do dia emergiam vorazes, de um vórtice qualquer da neblina. Eu era toda excitação e silêncio, adentrando o inexpugnável.


Caminhamos o dia inteiro no meio da floresta, em ritmo firme, parando 10 minutos a cada hora e quarenta e cinco para almoçarmos – ovos cozidos e uma farofa de carne seca. Nas paradas aproveitava para fotografar e no almoço, à beira de um riacho, aproveitei para dar um mergulho e refrescar o corpo e cabelos ensopados, tamanha a umidade. Chegamos na oca por volta de umas cinco da tarde e, como previsto, estava vazia. Uma grande plantação de abacaxis cobria um dos lados da oca e saí por entre os pés na esperança de algum, mas nada. Armamos as redes, pegamos vasilhame e facões – que eles sempre deixam nas ocas, presos em cestaria que ficam penduradas nos mastros internos – fomos até o riacho próximo tomar banho, buscar água e cortar alguns galhos e gravetos que pudessem fazer fogo, para o jantar e contra os bichos da noite.


De acordo com Mário os Zorowaha tinham, na ocasião, oito ocas, apenas duas habitadas; a população, calculava-se, estava em torno de 150 pessoas, divididas nessas duas ocas. O número de ocas tinha a ver com o cultivo, pois uma vez feita a colheita eles deixavam o local e iam plantar em outro lugar; as ocas ofereciam assim possibilidade de descanso para a terra e, talvez, local mais adequado para um ou outro plantio. Do que vi e soube eles cultivavam mandioca, abacaxi, banana, pupunha, milho, cana e tipos de inhame. Usufruí apenas da mandioca e da banana. Além do plantio, viviam de coleta, caça e pesca. Comi frutas que, tenho certeza, jamais comerei novamente e cujos nomes já não me lembro. Outra função das ocas é abriga-los quando saem para pescas coletivas, que durarão alguns dias.


As ocas são todas construídas perto de águas, desmatam o necessário para a construção e a madeira que cortam servirá para sustentação. Sua construção é cônica e a palha que cobre desce até mais ou menos um metro acima do chão, ou seja, não há uma entrada específica, entra-se por qualquer lugar, mas é preciso abaixar-se.





As roças são preparadas em espaço próximo, cada família tem seu pedaço e é responsável por ele. Um pouco mais distante há o cemitério, onde enterram seus mortos. Na oca em que ficamos havia, em um dos lados, uma espécie de varal onde punham a secar os cipós trançados e tingidos de urucum, que serviriam para a confecção de redes.


Depois de um bom banho em água límpida, que me pareceu mais insípida que a nossa (mesmo a de nossas cachoeiras e essa foi uma curiosidade que ficou), voltamos à oca: fazer fogo, preparar-nos o que comer e descansar pois meio dia de caminhada ainda nos aguardava e não havia sido fácil. Não pelo caminho em si mas o calor, a umidade que nos ensopava o corpo e as roupas, o ritmo apertado da caminhada e, sem dúvida, tensão, afinal era preciso estar atenta aos ruídos e aos bichos, numa escala que ia de pequenas aranhas peçonhentas a catitus (um porco selvagem e, com razão, também muito apreciado) e onças, passando por cobras e o que por ali vivesse. Nessas horas lembrava-me sempre de Seu Sizínio – “eles têm mais medo que nós, d. Cristina” – dando à frase toda força e veracidade de que eram capazes meus receios, que vinham na verdade imiscuídos de curiosidade – adoraria ver, com a distância e salvaguarda necessárias, uma cobra enorme enroscada em uma daquelas árvores, uma enorme almofada redonda de veludo preto que descobríamos ser uma caranguejeira (conhecia essas por fotos e as conheci menores na velha infância baiana). O catitu já nem tanto, tampouco as onças, seu tamanho e ferocidade nos poria a correr ou a enfrenta-los no facão, o que não era de forma alguma garantia de nada.


Hoje, já distante no tempo e contando essa história me ponho a lembrar de detalhes e perceber como nos transformávamos em pura atenção e prontidão. Não bastava estar atenta, era preciso estar preparada física, cognitiva e psiquicamente; ver e ouvir e ficar calma para tomar a providência necessária: saber como e por onde correr sem perder-me de Mário, pois isso poderia ser o fim de tudo; sangrar uma mordida; fazer um torniquete; aplicar um soro, ... o que quer que acontecesse era preciso sobreviver e disso se ocupavam pensamento e raciocínio em tempo integral. Não foi à toa que cheguei exangue e com dor de cabeça àquela primeira oca, apesar do trajeto ter sido tranquilo para alívio de meus receios e frustração de minha curiosidade.


Quando penso hoje que algo mais sério poderia ter acontecido, um de nós ter se machucado para valer, ter quebrado uma perna ou ter me perdido de Mário, me pergunto por quanto tempo sobreviveria; eu não fazia ideia de onde estava e mesmo localizando os pontos cardeais (o trajeto do sol também foi objeto de minha atenção), eles pouco me auxiliariam pois já havia perdido a direção de nossa canoa.


Havíamos levado alguns pacotes de sopa Knorr e algum pão, sabendo dessa noite. Para a volta teríamos o que eles nos dessem ou tivéssemos pescado ou caçado. Tomamos a sopa e alimentamos o fogo que, segundo Mário, era importante que ficasse aceso pois estando vazia a oca era comum que bichos ali viessem dormir, se protegendo da noite. E eu que havia imaginado uma noite tranquila e de descanso...


Tive poucos medos na vida, desses que a gente se dá conta que algo realmente muito sério pode acontecer e pôr fim a ou mudar radicalmente tudo. Mas naquela noite...


Minha dor de cabeça havia aumentado muito e eu decidi tomar um analgésico; levantei-me peguei remédio e água e aproveitei para atiçar o fogo. Voltei a deitar. Pouco depois um enjoo enorme só me deu tempo de virar na rede, colocar a cabeça para fora e vomitar a sopa e toda a exaustão do dia. Pensei desanimada no comprimido que havia tomado há pouco imaginando que teria que tomar outro; claro que não, vomitar aliviou-me a cabeça e o espírito. Dormi. Acordei um tempo depois, noite ainda, ouvindo um barulho muito próximo; imóvel, menos o coração que disparara, pus-me atenta; o fogo havia se apagado e a escuridão era total. O barulho estava bem embaixo de minha rede e quase sem respirar eu tentava identificar o que poderia ser – um bicho comia o meu vômito e não era pequeno, pois podia ouvir o barulho que fazia sua língua lambendo o chão além de um forte e pesado respirar. Um catitu, uma onça, uma anta, ...?!?! Imóvel estava e assim continuei aguardando o fim do repasto, temendo respirar mais fundo, esperando que não ouvisse meu coração e torcendo para que o vômito fosse suficiente e que seu cheiro fosse mais interessante que o meu. Tentei acostumar meus olhos à escuridão para ver o que poderia fazer se ele se voltasse para mim: escalar até o gancho de minha rede e subir pelo mastro – nunca subi mastros mas o medo sem dúvida me ajudaria – pegar a faca na minha mochila (havia comprado para levar uma dessas facas poderosas que arrancam espinhos, tiram escamas, abrem latas e garrafas...), talvez não tivesse tempo pra isso, apesar da mochila estar pendurada no mesmo mastro da rede. Devem ter sido alguns poucos minutos que duraram uma eternidade. Ouvi-o então se afastar, mas não sabia quanto, pensei que depois daquele jantar pudesse resolver descansar ali mesmo na oca e por precaução permaneci imóvel.


O cansaço adormeceu-me novamente para acordar com o dia já claro e ouvindo vozes. Abri meus olhos e encontrei outros dois, curiosos, e a não mais que um palmo dos meus, abrindo com as mãos minha rede e varrendo-me de ponta a ponta. Novamente a imobilidade (para algumas ocasiões era essa a estratégia) enquanto ouvia uma língua que não reconhecia. Estaria Mário acordado? O que estava acontecendo? O que seria mais adequado fazer? Ali deitada, na rede, eu me sentia completamente desprotegida. Foi quando ouvi Mário dizer rindo: “Pode ficar tranquila, são eles, já me reconheceram e querem saber quem é você; saíram para caçar e passando por aqui viram as redes e vieram ver quem era”. Eram cinco deles e nisso dois saíram correndo e Mário me disse que tinham ido avisar o grupo que ele havia voltado e trazia visita. Levantamos e eu me tornei o centro das atenções; como crianças curiosas (em nosso ponto de vista) acompanhavam de perto meus gestos e movimentos, abri minha mochila e vieram olhar o que tinha dentro. Falavam o tempo todo se dirigindo a mim e Mário lhes respondia; perguntei o que falavam: queriam saber se eu era mulher dele, onde morava, se tinha filhos, se ia ficar com eles...


Uma enorme excitação tomava conta de mim, um turbilhão de pensamentos e de emoções; eu custava a acreditar que estava realmente ali. Era literalmente outro mundo, outro tempo.


Ficamos de conversa, Mário de tradutor. Começamos então a nos preparar para seguir caminho, deixando a oca organizada como encontramos. Nisso ouvimos gritos e assovios, estão chegando pensei e pouco depois um grupo de homens e mulheres, essas mais jovens, se aproximou. Vieram direto para mim e fazendo perguntas a Mário, tocavam meu cabelo, minhas roupas, minhas coisas. Mário disse alguma coisa que os sossegou e começamos a juntar nossa bagagem para partir. Quando peguei minhas coisas – eu tinha um mochila maior e bolsa com o equipamento fotográfico – um deles pegou minha mochila e a colocou nas costas e outro veio pegar a bolsa do equipamento mas dessa, temerosa eu recusei a entrega o que foi prontamente aceito.


O trajeto até a oca em que estavam durou, conosco, umas quatro horas, muito mais do que gastaram para ir e voltar. Riam de mim sem pudor, em vários momentos, observando o que para eles era provavelmente pouca ou nenhuma desenvoltura. Lembro-me que tivemos de atravessar um longo tronco deitado sobre uma grande vala e antes de subir nele eu ajeitei a bolsa que me atravessava o tronco; nisso senti uma mão que puxava a alça em minhas costas, virei-me e era um mais velho que andava com uma estaca lhe servindo de cajado pois uma das pernas era cortada pouco acima do joelho e completada por um pedaço de pau amarrado com cipó à coxa. Fiquei sem saber o que fazer enquanto ele insistia em pegar a bolsa; tirei-a então e lhe entreguei e ele a colocou tal como eu, atravessada, fazendo sinal para que eu prosseguisse. Foi realmente um alívio, a bolsa era pesada e o tronco não muito largo. A essa altura já estavam quase todos do lado de lá, me olhando e dando risadas da minha falta de jeito.


Na primeira oportunidade perguntei a Mário o que havia acontecido com a perna e ele me disse que uma mordida de cobra venenosa infeccionara e, antes que o torniquete que lhe segurava o sangue não resistisse, ele decidiu corta-la. Usando de uma espécie de anestésico – se não me engana a memória certa dosagem de timbó, um cipó tóxico – e com os meios cortantes naturais de que dispunham – cipós, lascas de madeira dura e farpas – extirpou a perna doente. Talvez já tivessem o facão, não me lembro, e tenha sido ele o grande instrumento. O facão tinha sido uma das ferramentas deixadas pelos garimpeiros e estava em pleno uso quando encontrados pelos missionários; por razões óbvias, o facão e o caldeirão. Tanto que perguntando a Mário sobre levar algum presente ele prontamente respondeu: “sim, um facão e um caldeirão”. “Só um”? “Sim, para a família que nos acolher”.


Chegamos à oca e prontamente nos indicaram um lugar onde poderíamos armar nossas redes. Foram apenas seis dias de convívio, eu precisaria de muitos dias de férias para ficar mais tempo – para estar ali por seis dias eu gastei 28 de férias, entre ida e volta (Bh-tribo-BH), mas foram incríveis e inesquecíveis.


A simplicidade da vida e sua qualidade foram aspectos marcantes. Trabalham muito, mas a seu tempo, a seu modo e sua necessidade. Saem para caçar, coletar e pescar, quando a carne acabou ou os frutos, e quando voltam com uma grande caça, geralmente no final do dia, é uma festa! Pude presenciar, na véspera de nosso retorno, a chegada de um tamanduá gigante – jamais tinha visto algo daquele tamanho nem imaginado que pudesse existir. O dono da caça, aquele que matou, corta o bicho e lhe tira as entranhas que outro coloca, tal como retiradas, sem nada limpar, em um grande vasilhame de cerâmica com água e já sobre o fogo; os pedaços de carne são então distribuídos entre os demais da caçada, geralmente cada um de uma família. Nós também ganhamos um pequeno pedaço e foi a carne que nos serviu de alimento na volta. Se colocaram todos em volta da fogueira, adultos e crianças, rindo e falando, em plena comemoração me pareceu. Apreciava esse movimento quando Mário chegou trazendo um pequeno vasilhame fumegante e de cheiro muito forte. “Quer”? “O que é”? “Caldo de vísceras de tamanduá”, disse e riu. Eu respirei fundo e disse pegando a vasilha: “pra quem já veio até aqui, o que é uma vasilha com caldo de vísceras de tamanduá”?! Dei um gole e tive certeza de ter engolido uma bomba calórica, o gosto forte e gorduroso impregnou-se em minha boca, esôfago e todo o trajeto até cair em meu estômago de uma maneira que eu jamais consegui descrever. Respirei fundo novamente enquanto Mário ria, e disse que estava bem assim, satisfeita, que ainda tinha o caldo desde minha boca até o estômago. Era forte, forte como nada que já tivesse provado. Para aliviar comi farinha e depois um pedaço da carne, que também é muito forte e escura.


Em volta do fogo eles sorviam a iguaria com prazer e vontade, riam e conversavam. Sabiamente, as vísceras são a primeira coisa que cozem e tomam; uma fonte de energia também, imagino, a tomar pelo que senti. Depois comeram a carne com farinha e, findo o repasto, se puseram a cantar e, pareceu-me, brincar uns com os outros, gozando e provocando. Perguntado Mário me disse que contavam cenas da caçada, atropelos de alguns, enfim, gozações. Pouco depois começaram a cheirar rapé, cujo efeito me parece ser hilariante. Tive a impressão de ser o rapé um elemento de sociabilidade; em várias noites os vi cheirar em volta da fogueira e, animados, rir e conversar muito.


Além do tamanduá comi tucano, um outro pássaro que não conhecia, peixes, farinha e frutas que jamais saberei dizer seu nome nem encontrar novamente; sei apenas que são suculentas e dulcíssimas, pelo menos as que experimentei.


Além dessas atividades de caça, pesca e coleta se ocupam com a manufatura de redes, para as quais precisam trabalhar e tingir o cipó; se ocupam com o plantio, a colheita, a manufatura de vasilhames e cestaria, de flechas, tacapes, zarabatanas e a feitura de canoas, para o que possuem perto da oca um pequeno “estaleiro” onde trabalham os troncos, com técnicas impressionantes de impermeabilização e envergadura. Mas como disse, tudo à mercê da necessidade e no tempo que lhes apraz. Por várias vezes fui com algumas mulheres e meninas buscar mandioca e no caminho, a cada riacho encontrado entravam na água e brincavam; não havia hora para chegar ou voltar, não há hora de almoçar ou de trabalhar. Aos poucos fui entendendo o horror dos portugueses com esse povo “preguiçoso”. O tempo é deles, não se nasceu para só trabalhar e pode-se mesclar trabalho e lazer.


Só depois, já fora dali, é que pude entender que o que tomei por simplicidade era exatamente a ausência do excesso.


Na oca cada família tem seu espaço onde armam suas redes e debaixo de cada rede há um pequeno foguinho que à noite é aceso; serve sobretudo para aquecer. O chefe da tribo é escolhido por ser o melhor caçador, ou seja, o que demonstra maior habilidade e coragem e, por extensão, aquele que melhor protegerá o grupo.


A vestimenta se resume a uma franjinha feita de fino cipó e também tingida de vermelho (o urucum predomina), em forma de um cinto que, nas mulheres é colocado nos quadris, tampando o púbis; a franja é apenas na parte da frente. Para os homens, também presa em volta dos quadris, a mesma franja; o pênis é suspenso e a franja se prende ao prepúcio caindo sobre ele.





Por razões óbvias eu não consegui ficar nua. Mário logo colocou a sua “franja”, mas eu não consegui. Antes tivesse conseguido, teria me dado menos trabalho pois todos – homens, mulheres e crianças – vinham olhar dentro de minhas roupas; e o faziam sem pudor e sem pedir licença, simplesmente puxavam minha blusa e olhavam dentro. Eu relaxei e depois de quase todos terem dado uma olhada eles também relaxaram.


Foram dias intensos de convívio com uma diferença nunca então experimentada. A mímica foi minha grande aliada e algumas palavras como água, mandioca, rede, mãe, pai,... eu consegui registrar. As crianças estavam sempre por perto e mais ainda as adolescentes. Fiquei amiga de uma delas, se assim posso falar de uma afinidade surgida em brevíssimo tempo e no seio de tanta diferença; mas ela me ensinou muitas coisas, mostrava-me objetos e dizia seu nome, levava-me a riachos, mostrava-me plantas, estava sempre por perto, acolheu-me. Ariunã, nunca me esquecerei dela que deve ser hoje uma mulher feita. Das crianças lembro-me especialmente de uma encantadora e provocativa pirralhinha. Dos vícios de linguagem que costumamos colecionar tenho um que é responder o sim por um “ram-ram”; pois bem, Winari, de uns quatro anos, eu calculava, não podia me ver que vinha: “ram-ram”, “ram-ram” e muitas vezes saía pela oca simplesmente repetindo esse som; eu me indagava curiosa o que nele lhe poderia parecer interessante para que o repetisse assim. Havia um outro detalhe sobre Winari, em relação ao qual custei a relaxar; estava sempre com um facão que não conseguia levantar do chão por seu peso e tamanho – se o colocássemos a seu lado seriam quase do mesmo tamanho – e assim o arrastava para todos os lados e emitindo “ram-rans”. A primeira vez que vi a cena assustei-me e fiquei sem saber o que fazer, olhei em volta e vi que os adultos não tomavam conhecimento, ou melhor, tomavam a cena como mais uma das muitas formas de brincar das crianças. Pensei comigo que não seria eu a tomar qualquer providência e relaxei.


Aliás, relaxar foi uma das atitudes que mais tive que tomar nessa viagem.


O chão da oca era coberto de cascas – de banana, de abacaxi, de mandioca, de espinhas de peixe, de penas, bicos e de cana, dentre outros restos. Mas só percebi isso quando Mário me viu sair da oca e arremessar a casca de abacaxi no mato. “O que está fazendo”? “Jogando a casca no mato”. “Olhe à sua volta”. Foi então que vi o chão cheio de cascas e nem um mosquito sequer. O ar? Outro tipo de bactéria? Não sei. Sei apenas que em meio às cascas, volta e meia era depositado um recém-nascido que pelo tamanho, rugas e imobilidade eu imaginava duas ou três semanas de idade. Era filho de Koakoi e Witeri (não tenho certeza de seu nome, precisaria buscar meus alfarrábios) que, ocupada em fazerlhe uma rede, depois de alimentá-lo – preso debaixo de seu braço, com a barriga contra sua lateral e as perninhas para trás, de forma que a boca alcançasse o seio – deitava-o no chão depois de fazê-lo arrotar e continuava placidamente seu a fazer. Pensava em nossos cuidados e receios com os recém-nascidos e mais uma vez apreciei nossa diversidade e jeitos de estar no mundo.


Já de volta, contando da viagem e mostrando as fotos, um amigo arqueólogo vendo a foto do chão da oca, com as cascas, virou-se para mim e perguntou: ”Você percebe que ali está sendo depositado o futuro”? Minha expressão interrogativa o fez continuar: “Daqui cem, duzentos anos, vamos escavar essas terras e descobrir o que comiam”. Uma impensada obviedade que simplesmente encantou-me, e me fez sentir parte de um passado que um futuro longínquo estaria por descobrir.


Os dias na oca transcorriam assim, entre idas às roças, banhos nos ribeirões, conversas e brincadeiras, comia-se ao longo do dia e na hora e quando se tivesse vontade; só de noite, com alguma caça ou pesca maior é que se tinha o que considerei um repasto coletivo, em volta da fogueira. Uma tarde, tendo os homens saído em grande grupo para caçar, inclusive Mário, estávamos só mulheres, crianças e alguns mais idosos. Elas então me chamaram – sempre a mímica – para sair e fomos caminhando pela floresta até chegar a uma clareira, de tamanho suficiente para caber uma pequena choupana. Debaixo dela fizeram uma roda, nos demos as mãos e ela entoaram, para minha surpresa, “atirei o pau no gato”; entrei na brincadeira e rimos muito. Não sabiam as palavras mas adoravam o momento de cair no chão dizendo “miau”, som que entoavam alto e com vontade se deixando cair. Levantávamos e me olhavam esperando que eu pronunciasse as palavras o que fiz várias vezes até que resolvi me fazer entender pedindo que cantassem elas alguma coisa; puseram-se então a cantar e dançar desenhando no espaço movimentos leves e redondos, eu tentava imitá-las enquanto umas riam, as crianças sobretudo, e duas me ensinavam ciosas os movimentos. Voltaram para “atirei o pau no gato” e decidi ensinar outras. Vasculhei minha memória infantil e encontrei “sou carioca da gema” e “fui no tororó” que cantamos; resolvi também ensinar a brincadeira “batatinha frita 1,2,3” – que nos valeu deliciosas risadas. Foi uma tarde memorável, cujo sabor me chega fresco relembrando-a agora.


São curiosos e brincalhões e queriam saber tudo. Queriam saber quem eram meus pais e eu dizia seus nomes; se a família era grande, se tinha irmãos e irmãs, onde eu morava e eu isso eu tentava explicar dizendo que era depois do rio tal e do rio tal e do rio tal (alguns nomes eu sabia). Tudo isso na mímica – me mostravam a mãe de uma delas e se voltavam para mim indagativas, no que eu presumia quererem saber quem era a minha e por aí foi. Segundo Mário família é um elemento importante na cultura e na organização social e econômica deles – os plantios são divididos por famílias, assim como a caça, a pesca e os espaços na oca, dentre outros. Quando ali chegou e resolveu ficar, Mário foi designado a um grupo familiar do qual só restava a mãe, uma senhora já mais idosa – Xibukwá – viúva há pouco tempo. Como deveria estar ligado a um dos grupos familiares, o então “chefe” indagou-a e Mário se tornou o responsável por cuidar dela. Quando cheguei ela havia falecido não fazia muito tempo.


Ficaria com eles muito mais tempo e muito mais há para contar, mas é sempre preciso colocar pontos finais.


Descobri muitas coisas e aprendi outras tantas, mas sobretudo tive a certeza de que são povos que precisamos cuidar e proteger de seu maior predador que não é a onça nem o tamanduá gigante, mas alguém de sua própria espécie. Aprendi que a sustentabilidade que tanto discutimos e tentamos exercitar lhes é óbvia e natural – eles não exaurem a terra, não acumulam, não destroem; eles protegem sabendo que isso é o que os protegerá; sem conhecê-lo e sem pensar exatamente nele, eles cuidam o futuro. É claro que conheci assim de perto apenas um grupo e em sua condição ainda autóctone. Mas não creio serem diferentes de outros que já em contato conosco estão ameaçados em sua cultura, em seu território e em suas vidas. O que, não duvidemos, é uma ameaça para todos nós!


Deixamos a tribo ainda de madrugada para tentar o trajeto a pé num dia só. Um grande grupo nos acompanhou por um bom tempo e então nos despedimos. O pesar que experimentava me fazia sentir como se deixasse pessoas que haviam se tornado caras e que provavelmente eu nuca mais veria. Hoje sei que já fizeram contato maior e me ponho a imaginar como estarão, temo pela qualidade de vida que possam ter perdido.


Em nosso trajeto nos deparamos com grupos pequenos vivendo nas margens dos rios, nos barcos que se fazem casa, em condição de absoluta miséria – não sabem mais viver só da e na floresta e não possuem meios de entrar em nosso sistema, não sabem “produzir dinheiro”. Vivem, literalmente, às margens. Já distanciados e mesmo perdidos, de sua cultura e sua terra, são o resto de uma sociedade que sucumbiu sem alternativa à sedução do “prêt-à porter”; só que não estavam “prêt-à”, “prontos para...”. Hoje não têm mais o que é seu, nem mesmo o conhecimento, tampouco têm o que os seduziu – nem souberam ou puderam com isso estabelecer relação, troca e vínculo.


Foi a eles que também distribuímos remédios, foi a uma família – um casal e duas crianças - que na volta rebocamos até Foz do Tapauá, pois seu barco era lento e uma das crianças estava mal, não sabiam com o que, e precisavam chegar ao posto do INAMPS – como disseram – um instituto extinto em 1993 e substituído pelo SUS, mas cuja menção nos dava a dimensão do abandono. Tentamos identificar algum traço, sintoma que nos pudesse dizer algo sobre o que tinha a criança, mas nossos parcos conhecimentos médicos pouco ajudaram, tentamos aliviá-la da maneira que nos foi possível, com afeto e com açúcar. Ver aquelas pessoas, adultos e crianças, naquele limiar, naquela precariedade, onde éramos um último recurso, me fez sentir a pouca humanidade da humanidade. Temi mais uma vez pelos Zorowahá, pensava no quanto estavam bem. Não havia comparação possível entre as condições de vida desses dois grupos. Que não se repetisse com eles o que havia acontecido ao que restava de grupos como os Deni e os Palmari; vivendo nos barcos e em rios maiores, sem terra firme, estão à mercê da insalubridade e da improdutividade. Desintegrou-se o grupo de origem.


A esses é preciso ajudar, pensar meios de produção e resgate do que se perdeu. Aos que já estão conosco há mais tempo é preciso defender e lutar junto, e aos que estão na floresta e ainda desconhecemos é preciso deixar lá – a eles de nos buscar!


Quanto a mim, acho que vivi ali meu momento de catástrofe, aquele em não tendo mais como voltar a onda se dobra e se derrama como espuma; em que não tendo mais como fugir do predador o animal o enfrenta para viver. Vivi ali a experiência do equilíbrio e da ausência do excesso, como jamais havia experimentado. Uma dimensão em que desejo e necessidade convergem até quase se encontrar. Convergem tanto que são simples, simples e palpáveis, os objetos de sua eleição. Foi dessa simplicidade que me dei conta quando saí, quando voltei; foi a mais forte sensação que o encontro com a cidade conseguiu provocar, em toda e qualquer evocação da viagem E constatei, na carne, que quanto mais simbólica a cultura mais inefável se porta o desejo e infinitos se fazem seus objetos – excessos.


Invadir a Amazônia, mais que destruir a floresta é destruir povos! Não repitamos 1500!


O conteúdo do texto não representa necessariamente a opinião da PUC MINAS.

 
 
 

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© 2019 por Renata Rocha - Monitora de mídias sociais

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