OS ZURUAHù
- Psicologia PUC Minas SG
- 18 de out. de 2019
- 14 min de leitura
João Dal Poz
Afastados das principais vias de navegação no médio Purus, os Zuruahã mantiveram seu cauteloso isolamento até fins da década de 1970, quando foram localizados por missionários da Prelazia de Lábrea, alertados de sua existência pelas notícias de conflitos com sorveiros que invadiram o território indígena. Uma marca incisiva desse grupo é o alto índice de suicídios , intensamente articulada a seu sistema cosmológico e a situação de confinamento territorial nas últimas décadas.
Língua e identificação
Os Zuruahã falam uma língua da família Arawá, a qual congrega ainda os Jamamadi, os Kanamanti, os Jarawara, os Banawa, os Deni, os Paumari e os Kulina. Todos os representantes dessa família lingüística habitam a região compreendida entre as bacias do rio Purus e do rio Juruá, em seu curso médio, dois grandes afluentes da margem direita do Solimões.
Por ocasião dos primeiros contatos com membros do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ficaram conhecidos como “Índios do Coxodoá”, nome do igarapé onde foram encontrados (...).
Localização e população
Os Zuruahã habitam as terras altas entre os igarapés Riozinho e Coxodoá, afluentes da margem direita do Cuniuá — com seu curso em direção a leste, este último é um dos formadores do rio Tapauá, importante tributário da margem esquerda da bacia do Purus (Amazonas, Brasil).
Em janeiro de 1996, os Zuruahã somavam 144 pessoas. Não obstante recuos em determinados anos, sua população vem crescendo em ritmo lento desde 1980, quando eram pouco mais de cem.
História
Contam os Zuruahã, e disto temos outras evidências históricas (Barros, 1930), que são
remanescentes de uns tantos subgrupos territoriais nominados cujos contingentes, sucumbindo às doenças infecto-contagiosas e à impiedade da economia da borracha, decresceram drasticamente nas primeiras décadas do século XX, no período de maior expansão das atividades extrativistas em toda a Amazônia. Os subgrupos nominados mais citados nas narrativas históricas sorowaha são: os Jokihidawa no igarapé Pretão, os Tabosorodawa no igarapé Watanaha (um afluente do Pretão), os Adamidawa no igarapé Pretinho, os Nakydanidawa no igarapé do Índio, os Sarakoadawa no igarapé Coxodoá, os Yjanamymady nas cabeceiras do igarapé São Luiz, os Zuruahã no rio Cuniuá, os Korobidawa em um afluente da margem esquerda do Cuniuá, os Masanidawa na foz do Riozinho, os Ydahidawa no igarapé Arigó (afluente do Riozinho) e os Zamadawa no alto Riozinho.
Alguns subgrupos, entre eles os Masanidawa e os antigos Zuruahã, chegaram a manter relações amistosas com os seringueiros (os Jara, como são chamados os “civilizados”), e assim obtiveram roupas e ferramentas — machados, facões, anzóis e cordas que logo se tornaram objetos de troca com os demais subgrupos. Porém, dizimados pela gripe (o auxiliar do SPI José Sant'Anna de Barros notificou epidemias na bacia do Tapauá entre os anos de 1922 e 1924, com grande mortandade entre a população indígena, cf. Barros, 1930: 11) e receosos de novos ataques dos Abamady (provavelmente os Paumari do baixo Tapauá, armados com espingardas fornecidas pelos seringalistas), uns poucos sobreviventes de diferentes subgrupos buscaram refúgio nas redondezas do igarapé Jokihi (ou Pretão, para os regionais), o mais distante possível das rotas fluviais e das "colocações" dos adventícios, onde se reuniram aos Jokihidawa (literalmente, "o pessoal do Jokihi"), o subgrupo que ali residia originalmente.
O contato oficial
A Funai já tinha conhecimento da existência do grupo desde meados da década de 1970. Em dezembro de 1983, uma expedição do órgão denominada “Operação Coxodoá”, composta por 12 pessoas, incluindo índios Waiwai e Waimiri-Atroari, os contatou oficialmente. A expedição localizou oito malocas nos igarapés do Índio e Preto, ambos afluentes do Cuniuá.
Antes disso, em 78, eles já haviam entrado em contato com membros do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) com base na Prelazia de Lábrea, que passaram a visitá-los com alguma regularidade desde então.
Também passaram a ter contato com membros da missão JOCUM (Jovens com uma Missão, organização aparentemente vinculada ao Summer Institute of Lingüistics) a partir de julho de 1984, que se utilizaram do varadouro aberto pela expedição da Funai para se aproximar do grupo.
Também em 1984 foi criado o GT de identificação da área (Portaria n. 1764/E de 14/09/84) que incluía tanto membros da Funai como da Prelazia de Lábrea. Em 1985 foi proposta uma área de 233.900 ha, no então recém-criado município de Camaruã. (...)
O Projeto Zuruaha, até hoje em curso, começou a ser desenvolvido em 1984 justamente para combater os efeitos perversos dessas frentes de ocupação não-indígena. Trata-se de um programa de ações assistenciais, voltado à defesa da Terra Indígena e ao tratamento e prevenção de doenças, a cargo de uma equipe formada por membros da OPAN (Operação Amazônia Nativa), do CIMI e da Prelazia de Lábrea. Os Zuruahã recebem ainda a atenção do psicólogo Mário Lúcio da Silva, que residiu entre eles durante vários anos.
Organização social

Legenda: Grupo Zuruahã no Igarapé do Coxodoá. Foto: Gunter Kroemer, 1984.
Durante a maior parte do ano, os Zuruahã permanecem reunidos em uma das grandes casas cônicas que se erguem na zona central do seu território. É no interior desse domicílio comum que a vida social se adensa, numa complexa teia de relações de parentesco, laços de amizade e múltiplas formas de convivência.
Na casa (oda) sem paredes laterais ou divisórias internas, cada família ocupa, de maneira mais ou menos aleatória (se possível, nas proximidades de consangüíneos de um dos cônjuges), uma das repartições domésticas (kaho) que circundam a planta arquitetônica. A casa pertence ao homem que a constrói, ele é o seu "dono" (anidawa) e se encarrega dos reparos necessários quando o grupo ali reside — período que varia entre alguns meses a pouco mais de um ano.
Construir casas é um dos atributos da maturidade masculina; ao longo de sua vida um homem chegará a levantar quatro ou cinco delas. Para sua construção, que exige um a dois anos de dedicação e muito esforço, todos os homens colaboram na montagem da estrutura de madeira, ao passo que a cobertura de palhas caberá ao seu anidawa.
A categoria anidawa, além de "dono da casa", abrange também outras relações, como a propriedade da roça, a posse de objetos de valor (uma canoa, por exemplo) e a liderança nas caçadas e pescarias coletivas, e corresponde, em cada um desses casos, a certos direitos e deveres que orientam o curso
da ação social.
Chefia e gênero
Seja nas atividades costumeiras ou em situações de crise, não se observou até o momento a instituição de uma chefia ou qualquer modelo de centralidade política. Neste ponto, sua organização social parece afastar-se da dos outros Arawá, entre os quais a chefia é uma função relevante (por exemplo, o tamine entre os Kulina). Em seu lugar, no entanto, vigora entre os Zuruahã uma espécie de "ordem dos caçadores", de cunho hierárquico, que notabiliza os homens de acordo com a quantidade de antas que cada um já abateu.
Uma forte oposição contrapõe os homens às mulheres, valorizando-os desigualmente em muitos aspectos da vida social. Os filhos homens são, do ponto de vista de ambos os sexos, um motivo de legítimo orgulho, de tal forma que a exigência de tê-los é, por vezes, sustentada quase como uma obrigação moral, da qual não escapam sequer os forasteiros. De fato, um dos feitiços que as mulheres mais temem é, precisamente, o que lhes interdita a concepção de meninos. E o próprio reconhecimento social do amadurecimento biológico de um indivíduo, isto é, a passagem às categorias etárias dogoawy, tem como parâmetro o ciclo de vida dos seus descendentes masculinos.
Ciclo de vida
Em seguida às fases da primeira infância, a grade etária sorowaha está dividida em seis estágios básicos:


Vida cerimonial
Na esfera ritual, a maturidade masculina (entre 12 e 14 anos) é sinalizada pela colocação do sokoady ("suspensório" peniano), um evento público que tematiza essencialmente as relações de afinidade (com quem se poderá casar). Após uma grande caçada ou pescaria, refeições coletivas e danças, os rapazes recebem o adereço de cordéis de algodão e são então surrados pelos homens adultos (exceto seus consangüíneos). Daí, vão deitar-se em redes que são armadas no alto, na parte
central da casa, enquanto seus consangüíneos participam de uma peleja contra os demais homens (estes, ornamentados, gesticulam como "macacos-barrigudos", e por isto este duelo ritual chama-se gaha), abraçando-os fortemente pelas costas. Na etapa final os rapazes são levados pelas mulheres para um banho no igarapé, onde cortam seus cabelos e os pintam de urucum; neste momento, os circunstantes gracejam insinuações sobre as eventuais relações sexuais do iniciado (Fank & Porta, 1996 a: 14-20).
Para o sexo feminino, a entrada na adolescência, com a chegada da primeira menstruação, implica sua reclusão e isolamento no âmago do espaço doméstico (com os olhos vendados, as meninas ficam deitadas na rede, quase não comem e apenas saem, em geral, à noite, para as necessidades fisiológicas). Mas é no controle efetivo da sexualidade feminina que, a rigor, as diferenças de gênero são reiteradas e se evidencia a submissão forçada das mulheres: seu comportamento sexual está sob constante vigilância, são freqüentemente admoestadas por seus pais, irmãos ou outros parentes próximos e proibidas de saírem desacompanhadas, em razão da ameaça de "abuso sexual" por não-consangüíneos.
Em vários momentos e de diversas maneiras, as virtudes pessoais e o desempenho individual são evocados, realçados e socialmente valorizados. O vigor juvenil é constante e ostensivamente exaltado e as exibições de força física acontecem amiúde — em particular, por ocasião das tarefas de construção da casa —, e delas participam até mesmo homens com idade mais avançada. Da mesma maneira, nos "rituais de carregamento" os homens e os rapazes, um a um, são obrigados a deslocar um volumoso feixe de cana ou um grande cesto abarrotado de massa de mandioca ralada.
E, no campo dos juízos morais e estéticos, talvez se possa inferir uma operação de individualização muito semelhante, por meio de comentários corteses ou ferinos a respeito do comportamento alheio, ponderações sobre semelhanças físicas entre indivíduos, elogios a predicados das mais variadas e até bizarras partes da anatomia humana (as panturrilhas, por exemplo).
Cosmologia e suicídio
Um dos aspectos mais incisivos da sociedade sorowaha é a regularidade da morte voluntária por meio da ingestão de konaha (timbó, variedade de planta largamente usada para envenenamento de peixes entre grupos indígenas sul-americanos).
Em um levantamento genealógico que remontou cinco ou seis gerações passadas, foram reportados 122 casos (75 homens e 47 mulheres) anteriores a 1980. Qualquer que seja o período em questão, todavia, observa-se que, em sua maioria, os suicidas eram jovens de ambos os sexos (isto é, nas categorias etárias wasi e atona, respectivamente rapazes e moças entre 14 e 28 anos.
De 1980 a 1995 houve entre os Zuruahã cerca de 38 óbitos por suicídio — 18 homens e 20 mulheres —, em meio a uma população média de 123,6 pessoas. Durante o mesmo período, nasceram 101 crianças e morreram 66 pessoas ao todo. De um lado, portanto, uma alta taxa de natalidade (cerca de 6,3 nascimentos anuais); de outro, um crescimento demográfico pouco expressivo, em torno de 1,9% ao ano. Quanto aos fatores de mortalidade, prepondera a intensa prática de suicídio por envenenamento (38 casos, ou 57,6% do total). Dentre a população adulta (pessoas acima de 12 anos) no mesmo período, os suicídios proporcionaram a extraordinária cifra de 84,4% de todos os óbitos nessa faixa (38 casos num total de 45).A acentuada tendência suicidógena a que os jovens se inclinam não desperta, do ponto de vista nativo, qualquer surpresa. Os Zuruahã compartilham a firme opinião de que "wasi e atona gostam de tomar konaha; dogoawy não" (dogoawy, homens e mulheres maduros), como declarou Ohozyi, sem maiores rodeios. Tal pendor patentearia, de fato, certos postulados arraigados na filosofia de vida indígena, que enunciam um valor absoluto para essa etapa do ciclo biológico e, como corolário, a recusa peremptória (e um certo desprezo) à velhice e à decadência física. De acordo com os Zuruahã, por esta razão, "não é bom morrer velho, é bom morrer jovem e forte". De sorte que a orientação e os valores que exaltam a juventude e informam sua conduta radical mostram-se inteiramente congruentes com o comportamento estatístico dos suicidas.
Entre os Zuruahã, os jovens de ambos os sexos atravessam um período bastante conturbado em suas relações com a família e com a coletividade, período que se inicia logo após os eventos que marcam seu ingresso diferenciado na vida adulta, ou seja, a imposição do sokoady para os rapazes e a primeira menstruação para as meninas, e que prossegue durante os primeiros anos de seu casamento — os desentendimentos conjugais e a convivência tensa com os afins, com efeito, compõem uma mistura explosiva. Há que se creditar à ênfase excepcional que a sociedade sorowaha empresta às virtudes físicas e morais, sobretudo as que conotam a juventude, a maior parte das perturbadoras tensões que afligem rapazes e moças, tão intensamente exigidos quanto ao seu desempenho individual (força física, habilidade, disposição, beleza, controle da sexualidade etc.) e, por isso mesmo, tão suscetíveis a eventuais desavenças e desgostos. Os atritos parecem diminuir com o nascimento dos primeiros filhos, quando os casais enfim alcançam uma certa estabilidade emocional (Fank & Porta, 1996 a: 6).
A morte anunciada
As tentativas de suicídio, em sua maior parte, respeitam um padrão bastante regular de conduta. O envenenamento, ou talvez intoxicação, dizem eles konaha bahi, "por causa do timbó", é o único meio utilizado para tal fim.
Os passos trilhados pelo suicida, costumeiros e previsíveis em determinadas situações, podem ser decompostos em umas poucas unidades cênicas:
1. um determinado acontecimento provoca irritação ou contrariedade;
2. o indivíduo então destrói seus pertences (corta e queima a rede, quebra suas armas e
ferramentas, estilhaça os utensílios de cerâmica);
3. os circunstantes, parentes ou não, deixam-no extravasar sua agressividade; procuram
disfarçar sua apreensão e, com estudada naturalidade, continuam suas atividades corriqueiras ou começam imediatamente alguma; eles evitam olhar diretamente para o raivoso, mas acompanham furtivamente seus movimentos;
4. se após o acesso catártico a raiva ou o desgosto ainda não o abandonou, o indivíduo emitirá um grito ou logo sairá ostensivamente da casa, correndo em direção a alguma roça para arrancar raízes de timbó;
5. os que acompanhavam discretamente o que se passava avisam os demais (parentes,
talvez), e algumas pessoas (geralmente do mesmo sexo) perseguem o suicida ou, se este já está distante, procuram-no nos caminhos que vão dar às roças;
6. se os perseguidores o encontram, tentam tirar-lhe as raízes; caso contrário, o suicida se dirige a um córrego e ali espreme e mastiga o timbó, de modo a ingerir seu sumo; em seguida, bebe um pouco de água para ativar seus efeitos tóxicos;
7. daí, ele volta correndo rumo à casa (alguns não o conseguem, e desfalecem ou morrem no caminho);
8. ali chegando, o suicida é atendido por seus parentes ou outros, o que varia segundo os motivos e as relações que suscitaram a tentativa; a operação de salvamento consiste em provocar o vômito, irritando o esôfago com talos de folhas de abacaxi, esquentar o corpo com abanos aquecidos (tarefa realizada pelas mulheres), bater nos membros dormentes e gritar ao ouvido para despertá-lo, mantendo-o sempre sentado;
9. no curso do tratamento, em geral, as pessoas mostram-se zangadas com o suicida, falam-lhe agressivamente e xingam-no;
10. a eventual morte do suicida, todavia, espraia uma forte comoção e ganha expressão ritual através de chorosas entoações; o desfecho dramático motiva outras tantas pessoas (consangüíneos, afins, amigos) a realizar, logo em seguida ou passado algumas horas ou dias, novas tentativas de suicídio, as quais dão início a um novo ciclo de perseguições e medidas de salvamento. Os sintomas e as reações fisiológicas decorrentes do envenenamento, como pressão baixa, frialdade, convulsões
e inchaço, são paulatinos e inspiram uma maior ou menor atenção ao paciente. A sua sobrevivência, no entanto, depende de circunstâncias variadas, entre as quais a firmeza de vontade, a quantidade ingerida, a resistência ao tratamento, a disponibilidade de pessoas aptas para socorrê-lo e o número de tentativas simultâneas em curso.
11. Os motivos que, em geral, indispõem o indivíduo com alguém, com o conjunto do grupo ou consigo mesmo ou o comovem de alguma maneira, e que são oferecidos como justificativas para as tentativas de suicídio, estão imbricados numa teia de sentimentos que, nessas situações específicas, apregoa-se abertamente: dentre outros, a afeição (kahy), a raiva (zawari), a saudade (kamonini), especialmente sob a forma de pesar pelos mortos, e a vergonha (kahkomy). Por ocasião das exéquias, a raiva e a saudade arrebatam parentes e amigos, e com isto marcam as expressões de luto nesse universo cultural.
12. A trágica morte de um suicida anima invariavelmente inúmeras outras tentativas, numa reação em cadeia que atinge parentes lineares, colaterais, afins ou mesmo amigos da vítima. O mesmo se passa, na verdade, em qualquer caso de falecimento, seja devido à picada de cobra, doença ou acidente. Isso faz das honras fúnebres um drama incomensurável, de difícil descrição, que redunda em embates entre potenciais suicidas e quem tenta salvá-los, em imputações de culpa a uns e outros, em ameaças e, até mesmo, em agressões físicas. De modo que a morte de alguém se desdobra quase sempre numa série de outras.
13. Em 1985, após o suicídio de uma jovem escorraçada pela sogra, morreram sua irmã e a cunhada. Em 1986, o suicídio de um homem, revoltado com a esposa que não lhe fez comida, provocou a morte de um amigo e do pai classificatório deste. Em 1987, morreram a mãe e um amigo de um rapaz que se havia matado porque outros reclamaram das fezes do seu cachorro. No mesmo ano, duas adolescentes tomaram konaha porque a avó de uma censurou-lhe os deslizes sexuais, o que induziu à morte seu irmão. Em 1989, quando faleceu uma menina de picada de cobra, suicidaram-se o pai viúvo e dois sobrinhos deste — um rapaz de 14 anos e um homem casado. Três meses depois, a viúva do último, a irmã desta e o pai do rapaz também morreram. Duas semanas depois, a irmã de um dos homens falecidos anteriormente teve uma rusga com o marido e matou-se, sendo acompanhada por uma adolescente. Em 1992, um "dono de casa", atarantado com os trabalhos de manutenção da maloca, magoado com sua esposa e aborrecido com o desaparecimento de uma faca, suicidou-se e com ele dois irmãos, seu pai e um companheiro de geração. Por fim, tive informações sobre uma seqüência de suicídios em fins de 1996, em razão da morte de um rapaz recém-iniciado, picado de cobra no acampamento de caça: duas mulheres (entre elas, a mãe do rapaz), dois homens casados e duas moças solteiras.
A morte no complexo cosmológico
Um dos aspectos da questão, decerto, diz respeito ao lugar da morte voluntária no modelo cosmológico sorowaha. Neste, todos os seres vivos estão dotados de um princípio vital místico, seu karoji; e o karoji dos seres humanos é a própria "alma", asoma. E a alma, de certa maneira, confunde-se com o "coração", giyzoboni, a sede das lembranças, das emoções, dos sentimentos, da verdade interior — um dia, disse-me Ody: "Você fala não, mas seu coração diz sim!" Quando alguém morre, o seu coração/alma abandona-o e, nas águas fundas dos igarapés, espera a chegada das
chuvas, quando então desce os rios maiores e salta para mergulhar no céu (Fank & Porta,1996 a; 1996 b).
Segundo Gunter Kroemer (1994: 150-1), os Zuruahã concebem três caminhos distintos que atravessam o firmamento: o mazaro agi ("caminho da morte"), o percurso do sol, por onde seguem os que morrem de velhice; o konaha agi ("caminho do timbó"), a trajetória da lua, por onde vão os suicidas; e o koiri agiri ("caminho da cobra"), o rastro do arco-íris, a rota dos que morrem de picada de cobra. Com isso, o destino escatológico encontra-se polarizado entre a casa do ancestral Bai, o Trovão, no patamar celeste superior, para os que ingerem veneno, onde as "almas" (asoma) reencontram seus parentes e vivem como os autênticos Konahamady (o "povo do timbó"), e a
morada do ancestral Tiwijo, à leste, para onde seguem as almas dos que morrem de velhice. Os que foram picados por cobra permanecem num espaço intermediário, o próprio arco-íris. A opção pela morada de Tiwijo, concebida como um caminho "penoso, onde os corações, sem achar sossego e paz, vagueiam" (:78), possibilita, paradoxalmente, sua transformação em seres eternamente jovens. A fonte dessa juventude, dizem eles, é uma "comida doce" que as almas recebem ao chegar — a
velhice apodrece no túmulo, junto com a pele do cadáver. Lá a vida é boa, as plantas agrícolas crescem sem esforço e a caça e a pesca são abundantes (Fank & Porta, 1996a; 1996 b). Mas, de acordo com Kroemer (:78), seria na direção de Bai que os Zuruahã projetariam sua "verdadeira existência à qual ritos, cantos e rezas estão relacionados" — um mundo tomado pelas águas, segundo eles, onde as almas comem apenas raízes de timbó e se transformam em peixes, seu destino final (Fank & Porta, 1996 b: 183-5).
Pode-se dizer que os suicídios ou as tentativas de suicidar-se são informados basicamente por conflitos e crises que, não nessa mesma escala de importância, envolvem o zelo pela propriedade (ferramentas, roças), o controle da sexualidade feminina, a auto-estima pessoal (ofensas, doenças, feiúra, insucessos), a aliança matrimonial (casamento e relacionamento conjugal) e, sobretudo, o sentimento profundo que une os vivos aos parentes falecidos. De modo que teríamos uma espécie
de economia mortuária a governar a sociedade sorowaha, na medida em que são os mortos que, em grande escala, produzem os novos mortos através da resposta suicidógena ao luto e à tristeza. O suicida, com sua atitude temerária, posiciona-se em uma disputa que pode ser glosada como um cabo-de-guerra entre vivos e mortos. Estes, que o "puxam" para acompanhá-los no além, um movimento induzido pelo sentimento de pesar imediato ou pela saudade, que retorna tempos depois nas recordações e nos sonhos. Aqueles, que tentam desesperadamente salvá-lo, ocasião em que extravasam sua raiva contra quem pretende abandoná-los.
Em certas situações, a iniciativa para tomar konaha corresponderá a uma auto-punição, pois seu autor atribui-se responsabilidade pelo malefício que infligiu a outrem. Há aqui uma certa analogia com o hábito de aspirar rapé, do qual os Zuruahã são verdadeiros aficcionados. Percebendo-se culpado de algo, uma pessoa pode resolver-se a tomar um porre de rapé, ou pode ser forçada a isso pelos demais, irritados com a conduta inconveniente.
¹ Nota explicativa: este povo também é chamado como “Zorowaha”.
O conteúdo do texto não representa necessariamente a opinião da PUC MINAS.
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